quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Por que não se fazem mais “Celsos Furtados”?

Alguns poderão achar que tal distinção é um exagero, dado que poucos dos insights teóricos de Furtado parecem ter sobrevivido na literatura “moderna” da disciplina — talvez Furtado até isso desejasse, sabedor que era de que toda obra científica tem por destino envelhecer e ser ultrapassada. Mas no contexto em que sua obra foi escrita, não há dúvida sobre o pioneirismo dos livros de Furtado sobre a historiografia econômica brasileira — seu livro mais famoso Formação Econômica do Brasil, é uma interpretação ambiciosa e eclética da história econômica brasileira ao longo de cinco séculos que mistura teoria econômica, história, sociologia marxista e até bits de demografia e economia política. Não é por acaso que, quando do seu lançamento (em 1959), esteve entre os livros mais vendidos (vendeu quase tanto quanto Gabriela, Cravo e Canela, o “Top 1” da época) e ganhou ao longo dos anos edições em vários outros idiomas.

Qual a formação ideal do economista?

Mas a parte que quero destacar do artigo é uma em que, no meio dos louvores à Celso, o Professor Vladimir nos oferece suas reflexões críticas sobre o curso de economia e a formação oferecida. Diz ele:
Pois Furtado sabia que não era o caso de falar apenas da produção do que se estoca e do que se consome, mas produtividade da criatividade humana nos campos da cultura. Ele sabia mais do que todos não haver crescimento sem desenvolvimento das potencialidades criativas da vida social. É esse desenvolvimento das potencialidades que deve orientar a verdadeira reflexão econômica.
Dificilmente encontraremos algo tão distante da formação instrumental e financista que hoje nossos alunos recebem nos cursos de economia deste país, para quem uma consideração dessa natureza parecerá quase um devaneio poético. Por isso, quem mais desconhece Celso Furtado são, atualmente, os economistas, principalmente esses que acreditam que pensar um país é operação feita com a mesma racionalidade de quem gerencia carteira de investimentos. Afinal, o que esperar de uma ciência humana recalcitrante que acredita hoje garantir suas cartas de nobreza vendendo-se como setor aplicado das, vejam só vocês, “ciências matemáticas”?
As observações do Professor Safatle sobre o curso de economia são interessantes por duas razões. 
 
Primeiro porque levantam a velha e surrada questão de quanto de “ecletismo” e “diversidade metodológica” deve existir no currículo de graduação da disciplina — ou, como prefiro ver, do conflito entre saber muito de pouco ou pouco de muito. Vale lembrar aqui que Furtado, nem ninguém eclético como ele, é produto de curso universitário algum. Logo, é meio inútil lamentar que não formamos mais Celsos Furtados. Ninguém nunca o fez.

Segundo, e talvez mais importantemente, porque ilustram como títulos e cátedras acadêmicas ou já não mais funcionam para exigir rigor factual mínimo no que se fala ou servem para desinibir quem os detém de falar inverdades e imprecisões deseducadoras. Afinal, o que há de financista, pelo amor de Zeus, na formação de economista hoje? E quem diabos quer uma formação não-instrumental (I wonder o que poderia ser isso..)? E em que universo o uso de estatística, um pouco de cálculo e de álgebra linear torna uma disciplina “um setor” da matemática? Ou serão, por analogia, as manicures um setor aplicado da dermatologia?

Beat me…but beat me good

Há muito o que se criticar na formação de economista oferecida nas universidades brasileiras — a falta de especializações sendo a principal crítica a meu ver. Mas criticá-la (1) pelo que é desejável (ter um componente instrumental, coisa que sem a qual, não haveria ninguém habilitado para, como Celso Furtado, interpretar novos eventos, mas apenas serem papagaios de histórias alheias) e (2) por não emular em treinamento de 4 anos um estado de conhecimento e ecletismo construído com décadas de autoestudo — Furtado tinha quase 40 anos quando escreveu Formação Econômica do Brasil! — é simplesmnente tolo.


Sergio Almeida
Professor de Economia da FEA-USP.